- Matheus Soares
Onde socialistas e liberais se encontram
Atualizado: 7 de Ago de 2020
Que a pandemia do Coronavírus escancarou uma dezena de falácias pelo mundo, isso ninguém pode negar. Até o olhar mais torto do mercado conseguiu nitidamente visualizar uma nova onda de ideias deixando em pedaços muitas afirmações pré-existentes. Nesse dilúvio de dúvidas, um apontamento se salvou: o Estado é, sim, importante.
No enfrentamento dessa crise sanitária, houve quem apostasse todas as suas fichas no isolamento social rígido, e quem, infelizmente, ignorasse o agravamento da situação desde o início. Nesses casos, entretanto, a discussão de um pagamento mínimo a população existiu concomitantemente. Em graus diversos, é claro, mas houve consenso.
Era 2004 – quando o Brasil começava a desfrutar de sua intensa e enrijecida economia das commodities. Naquele ano, vimos o Congresso Nacional aprovar uma Lei que durante a quarentena não só se mostrou necessária como obrigatória em muitos casos: a Renda Básica de Cidadania (também conhecida como Imposto de Renda Negativo).
Mas antes de falar sobre essa lei, é preciso entender como se chegou a essa resolução.
O conceito é o mesmo desde o início: a lei deve obrigar o Estado a garantir um pagamento a todos os cidadãos brasileiros. Todos mesmo, ricos e pobres. A quantia teria que ser suficiente para atender todas as necessidades vitais de uma pessoa.
A ideia, difundida a princípio pelo vencedor do Nobel, George Stigles, ganhou vez e voz aqui no Brasil em 2000, quando um socialista brasileiro se encontrou com um renomado liberal americano.
Milton Friedman era o liberal e Eduardo Suplicy, o socialista. A agenda, tradicionalmente avessa uma a outra, se encontrava ali para discutir a implementação da lei. De uma maneira inacreditável até então, a Renda Básica de Cidadania dava ali seus primeiros passos.
De lá pra cá, a discussão tornou-se ainda mais frequente nos fóruns econômicos mundo afora. Os entusiastas de esquerda enxergavam a renda mínima como um método eficaz no combate à desigualdade. Os de direita, uma ferramenta importante no poder de decisão de cada indivíduo.
A concordância dessas duas correntes ideológicas, todavia, não foi suficiente para a execução completa da iniciativa. Oferecer uma quantia mínima para todos os cidadãos não seria uma tarefa fácil, muito menos barata. Mas o mundo econômico-social jamais desistiu da ideia e chegou, inclusive, a recomendar um acordo internacional para se alcançar uma alternativa viável.
Suplicy mesmo, desde então, se dedica a cobrar do Executivo Federal a aplicação dessa lei que ajudou a construir lá em 2004. O pioneirismo do Brasil entre os grandes países não ajudou muito. A lei, aprovada no Congresso e no Senado, e sancionada pelo Presidente da República, nunca foi realidade. A não ser como simbólica referência, quando serviu de inspiração para o que conhecemos hoje por Bolsa Família.
Pesquisas recentes sugerem que mais de 80% dos empregos intermediários correm risco de desaparecer com a automação propiciada pela Revolução Tecnológica. Nessa trágica subtração, restariam apenas os empregos muito bem pagos e, do outro lado da esfera, os mais desvalorizados.
A agenda, como é possível observar, é muito mais profunda. A polarização/remodelação do trabalho precisa ser discutida como elemento central desses novos tempos. A pandemia, inclusive, de maneira muito veloz, acelerou o caráter essencial do home office, que será uma opção primordial não só na pandemia.
A Renda Básica de Cidadania seria, nesse primeiro momento, uma acepção comum politicamente para resgatar a dignidade e o poder de compra desse grupo.
Especialistas apontam que desenhar uma institucionalidade para a Renda Mínima no Brasil só vai ser possível quando a economia retomar um crescimento intenso. A distribuição de renda, alertam, será menos traumática nessas condições.
Tatiana Roque, vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, ressalta, ainda, que a implementação da lei depende diretamente de uma reforma tributária. Dinheiro há, mas será preciso uma ligeira inversão na maneira como ele é distribuído.
Elevar o nível de igualdade e liberdade nunca foi, nem será fácil. Sobretudo porque há interesses de classes maiores que a causa. Enfrentar o ceticismo é o maior desafio dessa nova fase de discussão.
Com a pandemia que estamos enfrentando, a Renda Básica voltou a ser discutida amplamente no mundo. Implementada às pressas, foi capaz de salvar a vida de milhares de pessoas. Num cenário normal, economicamente ativo, seria possível continuar com a transferência de renda?
Uma inversão da pirâmide tributária? Impostos sobre lucros e dividendos de grandes empresas? Uma porcentagem maior no Imposto sobre heranças de ricos e ricas do Brasil? Um corte considerável nas renúncias fiscais dos grandes bancos?
Economistas e ativistas do mundo não têm uma resposta definitiva, mas ambos sabem de uma coisa: a Renda Básica de Cidadania vai ser possível quando o papel do Estado for, enfim, remodelado. Esse, sim, um desafio que uma pandemia pode acelerar.
Proteção social, a marca da Renda Básica, não consiste unicamente em gerar empregos. Tem a ver muito mais com uma ideia de liberdade e fraternidade para aqueles que sem poder de decisão acham que a vida não tem mais jeito. Mas tem.
Matheus Soares é publicitário, formado em Publicidade e Propaganda e apaixonado pela arte da escrita. Tem, entre seus sonhos, a criação de um espaço onde o diálogo seja sempre construtivo e a troca mútua de experiências contribua para um aprendizado político e social. Tem devoção pela democracia e acredita que é possível encontrar bons quadros em qualquer museu.