- Matheus Soares
Nem vem de escada que o incêndio é no porão
Atualizado: 30 de Ago de 2019
No planeta das acusações digitais, que se apoia em uma jurisdição que mata e depois procura saber quem é, você sabe, há os temidos cegos destruidores de reputação. Donzelas sem rosto que se escondem entre os rizomas da rede. Basta uma chacoalhada e todas caem com as perninhas viradas para o ar. Às vezes, uma rolada na tela já resolve, né?
As mentiras acusatórias, entretanto, não são criações do mundo contemporâneo. Desnudar o que se chama hoje de fake news não é algo fácil. Em décadas passadas então, nem se fala. Um dedo apontado coletivamente poderia significar a morte moral de uma carreira ou de um discurso. Crime de lesa-história.
Elis Regina, por exemplo, foi enterrada pelo cartunista Henfil depois de cantar em um evento promovido pela Ditadura Militar. Com ela, a história foi mais gentil. Nossa maior estrela conseguiu se desvencilhar dessa diminuição barata e reorganizou a sua trajetória.

O personagem do texto de hoje não teve a mesma sorte. Dono de uma carreira brilhante, foi alvo de uma perseguição ideológica da esquerda quando foi injustamente acusado de dedurar colegas militantes e de colaborar com o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), o órgão repressor da Ditadura Militar. Renegado pela classe artística, teve sua representatividade atrofiada por discursos infundados e inverídicos.
Wilson Simonal. Se é brasileiro (a), caro (a) leitor (a), grave esse nome e procure em sua biblioteca musical o som que esse cara fazia. SI-MO-NAL! O rei da pilantragem. Um gênio terrivelmente queimado pela opinião pública. Um jovem, um negro, um malandro que pavimentou para sempre seu espaço na indústria fonográfica do Brasil.
Mas atenção, patrulha da internet! Pesquise esse nome também com todas as suas contradições! Reveja suas apresentações, sua ascensão e sua queda. Pese suas decisões, contextualize a época em que vivia e exercite, em nome de sua história, um mínimo de empatia. Seus gastos e gestos descontrolados também devem estar na análise. Revise os supostos episódios machistas que protagonizava, mas não se esqueça de relembrar também o racismo que sofria.

O que não se pode nunca negar é que depois de séculos o Brasil pôde, enfim, prestigiar um negro apresentar sozinho um programa de TV. Simonal assinava contratos milionários e criou até uma empresa para organizar a própria carreira. Algo inimaginável para os padrões da época.
Em recente entrevista, o ator Fabrício Boliveira, que interpreta o cantor nos cinemas, lembrou: "Mataram esse mito, essa referência dele para a gente. Essas coisas não mudaram, continuam acontecendo ainda hoje. Se eu tropeço, quebro uma câmera, uma semana passa e todo o mundo esquece. Se é um negro, ele vai arrastar essa câmera pelo resto da vida", analisa. "E todo mundo tropeça, ninguém passa incólume na vida."
O filme estreou no último dia 08 de agoso, mas ainda não está em cartaz em Poços de Caldas. Isso é uma constatação. E uma crítica.

Ninguém jamais ocupou o seu espaço. Na Copa do Mundo de 1970, foi convidado pela CBF para acompanhar a Seleção Brasileira. Dizem que até Pelé ficou cismado com a quantidade de autógrafos que o cantor deu naquela passagem. Um fenômeno!
Um artista sem definições que caminhou com brilhantismo entre o samba e o swing. Um negro que chegou a um lugar onde nenhum outro havia chegado. O maior cantor do seu tempo. Um gigante que ao longo de sua carreira ganhou muita grana e respeito.
Morreu de cirrose hepática, no ostracismo, em 2000.
A história brinda os controversos! Aliada do tempo, ela esplandece a verdade e a vida de quem nela acredita.
Matheus Soares é publicitário, formado em Publicidade e Propaganda e apaixonado pela arte da escrita. Tem, entre seus sonhos, a criação de um espaço onde o diálogo seja sempre construtivo e a troca mútua de experiências contribua para um aprendizado político e social. Está prestes a comprar uma vitrola para, enfim, ouvir os discos que tem.